segunda-feira, outubro 09, 2006

O KIT DA FELICIDADE

Texto originariamente publicado em 2001

Ha pouco tempo atrás, aos carecas só restava assumir com dignidade a clareira craniana ou utilizar desajeitadas perucas para tentar encobrir aquilo que não dava mais pra esconder: que o tempo passa. Também não faz muito tempo, aos impotentes sexuais restavam poucas opções: rezar, esperar, esperança. Aos deprimidos e mal humorados, a esperança de dias melhores, como se o problema fosse esse, e sacos de risada. Aos portadores de celulite a única saída era a reencarnação; e finalmente aos fumantes inveterados, trinta dias de inferno astral pela abstinência; o sorriso amarelo (é... voltei) ou a saída gloriosa e bem humorada: parar de fumar é fácil, já parei de fumar mais de cem vezes.
Pois bem esse mundo velho e tenebroso foi-se. A Ciência tornou-se algo próximo ao divino: finasterida pra calvície, viagra para impotência, gel redutor pra celulite, prozac pra depressão e mau humor, citalopran pra acabar com a compulsão à compras, ziban pra parar de fumar... enfim um conto de fadas, um verdadeiro Kit da felicidade. Isto sem contar que já fizeram crescer orelha humana nas costas de ratos de laboratório; só não entendi pôr que não implantaram um órgão sexual, venderia muito.
Admirável mundo novo. E ainda tinha gente pensando que o mundo ia acabar em 2000. Quanto pessimismo.
Mundos retratados, só nos resta mesmo questionar aonde vamos parar? A que destino nos conduzirá essa maravilhosa ciência? Às vezes imagino o tele-transporte. Que maravilha, do Rio de Janeiro a Paris em apenas um segundo; só esperamos que uma mosca não viaje junto. Mas já sabemos que é possível. Já a algum tempo, tele-transportaram um Fóton, (partícula associada ao campo eletromagnético, com massa em repouso nula, carga elétrica nula, e spin igual à unidade, estável, e cuja energia é igual ao produto da constante de Plank pela freqüência do campo) muito embora seja um pouquinho complicado compreender, dá para vislumbrar pelo menos o significado disto à longo prazo.
Enquanto a ciência caminha a passos largos, o ser humano permanece no meio do caminho com grandes evoluções intelectuais e questionáveis evoluções afetivas que não necessitam de provas. As mesmas questões do milênio antepassado se fazem presente no cotidiano. Guerras, poder, inveja, ciúme, dinheiro, quanta mesmice, aliás, uma chatice. Se assistirmos a um telejornal qualquer de dez ou trinta anos atrás, as noticias serão as mesmas: corrupção, assalto, morte, catástrofe, algumas noticias cientificas e esportivas pra contrabalançar e boa noite. Podem conferir, só muda local, data e personagens, o enredo é o mesmo.
A ciência corre e a consciência caminha. Olimpíada desigual, e como é desigual. O novo KIT da felicidade promete e cumpre algumas de suas promessas. Mas como tratar a delinqüência, a chatice, a incompreensão social, o descaso, a corrupção, e a falta de educação? Às vezes penso em reais novidades, senão vejamos: Delinquenol, Corruptanol e Fofocoless, três maravilhas da química a serviço da vida. Talvez fosse a solução. Uma pílula pôr via oral/dia exceto o Corruptanol, que deveria ser em forma de supositórios, cada vez que o doente tivesse acessos da síndrome.
Abrindo mão da ficção, fica uma impressão que o ser humano evoluiu tanto no ultimo milênio quanto um guarda chuvas. Pode ser que a analogia não seja perfeita mas pelo menos dá pra perceber o quanto nossa evolução tecnológica deixa de privilegiar, na maioria das situações, aspectos relativos à vida emocional e afetiva.
Pois é, a mente humana. Será que dá pra desenvolve-la? As previsões são de que no futuro tenhamos uma cabeça bem maior. Não conheço nenhuma estatística com taxa de crescimento crânio-cerebral, mas se houver, deve estar diminuindo na exata proporção em que a bolsa com os Kits crescem. A capacidade de reação do ser humano diminui com o desenvolvimento tecnológico?
Talvez a solução esteja na primordial diferenciação entre intelectualidade e afetividade. Talvez aí resida a questão. A intelectualidade é facilmente adquirida, nos livros, nas faculdades, nos grandes centros de formação. E a afetividade? Aquela que reprimida pode levar tanto a angustia quanto à neurose pessoal ou social. Podemos comprá-la, desenvolve-la, ou será irremediavelmente anacrônica? Devemos pensar sobre isso?