terça-feira, outubro 17, 2006

FREUD: CONFLITO E CULTURA

Publicado originalmente em setembro de 2000


A partir do dia 26 de setembro, estará no Brasil, no Museu de Arte de São Paulo, uma grande exposição dedicada ao autor de “ A Interpretação dos Sonhos”, Sigmund Freud. (1856-1939)
Intitulada Conflito e Cultura, a mostra teve seu início em Washington, DC (EUA) na Biblioteca do Congresso - que detém o maior acervo de documentos relacionados com o Fundador da Psicanálise - onde esteve de outubro de 1998 à janeiro de 1999, posteriormente deslocando-se para Nova York, Viena, Los Angeles, de onde virá para o Brasil. A vertente brasileira da exposição terá ainda uma mostra paralela, verde e amarela, idealizada pelo curador da mostra no Brasil, o Diretor de Cultura e Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Leopold Nosek.

Na seção norte americana da mostra, poderá se encontrar desde a voz do próprio Freud, numa entrevista que deu à radio BBC de Londres, quando lá chegou refugiado do nazismo, até mesmo manuscritos. Estará também incluso uma réplica do divã utilizado por Freud, uma vez que o divã original não pode sair de Londres.

A parte brasileira da mostra, colocará em exposição, originais das cartas enviadas por Freud aos pioneiros da psicanálise no Brasil, e a membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; exemplares dos livros de Freud que pertenceram a Mário de Andrade, repletos de inscrições dele, alem de quadros de Pintores Modernistas. Para complementar, haverá ainda um ciclo de palestras que será inaugurada pelo escritor peruano Mário Vargas Llosa. Dentro da programação brasileira ainda será mostrado os documentos relacionados a um serial killer dos anos vinte, Febrônio Índio do Brasil. A partir dele, saíram os primeiros laudos clínicos brasileiros de inspiração psicanálitica. Febrônio foi também paciente fundador do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro.


VARGAS LLOSA- FREUD


O Convite feito ao escritor Vargas Llosa para a abertura dos ciclos de palestras e debates não poderia ser mais significativa. Os posicionamentos do escritor no sentido de um repúdio visceral a qualquer forma de repressão, fazem alusão aos vários momentos constituintes da Psicanálise.
Em O Futuro de Uma Ilusão (1927) Freud aponta para os aspectos defensivos de sistemas ideológicos repressivos, a partir do instante em que uma condição se instala : a proibição em levantar duvidas quanto a sua autenticidade e a exigência de uma crença incondicional.
Em Psicanálise, a repressão (recalque),ao mesmo tempo em que funda e estrutura o psiquismo, introduzindo o sujeito humano na ordem simbólica, pode gerar sintomas e efetiva medidas defensivas que se levadas a extremos, podem se caracterizar pela pratica de condutas adeptas à opressão, independente da forma como venha a ser manifestado tal conduta. Uma pequena alteração da letra ilustra o pressuposto: na(rci)zismo.
A regulação das relações em geral com objetivos de bom funcionamento, fazendo referencia a uma lei que não é própria, mas representação de uma lei maior, é indicativo de um co-mando, uma autentica liderança. Já a auto- referencia, a duplicidade de leis, ao contrario, são atuações de mando, não de comando. Autoritarismo e autoridade. Na família, na sociedade, no Estado. Momentos questionados a todo instante na vida e obra de Freud




ODIOS E PAIXÕES


Nos Estados Unidos, a iniciativa da Biblioteca do Congresso em promover a mostra, trouxe uma tempestade de protestos. Segundo os críticos, a exposição serviria apenas para consolidar o establishment da psicanálise, sem abrir espaço para a furibunda contestação a Freud que está sacudindo a sociedade americana. Em verdade, a furibunda contestação a Freud parece ser a marca registrada da própria psicanálise. Acusada de ser patriarcal, demorada e elitista, nunca uma ciência sofreu tantos ataques. A cada ano surgem notícias diversas em relação à sua morte. Em nenhum momento da história se foi testemunha de tantos atestados de óbito. O mais interessante porem é que de forma nobre ou indignada, a grande referencia teórico-clínico-psicoterápica é a própria psicanálise. Ao mesmo estilo das indagações de amor e ódio como pertencentes a objetos revestidos de importância, sendo o oposto a indiferença, Freud e a psicanálise encontram-se no grande podium. Somente em 98 foram escritos, nos Estados Unidos, mais de 200 livros combatendo a Psicanálise. Em contra partida, o texto O Mal estar na Civilização foi o livro mais lido em todos os centros acadêmicos do planeta, e o filme documentário de Elizabeth Roudinesco, Freud e a Invenção da Psicanálise, foi considerado o melhor documentário produzido para televisão em 1997, na europa.
Em se tratando de cultura, dificilmente se consegue produzir falas sem que se faça referencia a conceituações psicanalíticas, ainda que muitas vezes não se aproxime das exatidões teóricas. Libido, transferencia, fálico, narcisismo, regressão, conceitos operativos dentro de uma teoria que ultrapassou as fronteiras do setting, fazem parte hoje de um vocabulário cada vez mais cotidiano e socialmente disperso.


SCHLOMO SIGISMUND FREUD


Nascido em Freiberg, na Morávia (Pribor, na República Tcheca) em 6 de maio de 1856, centenas de obras foram escritas sobre Sigmund Freud e algumas dezenas de biografias lhe foram consagradas.
Médico e Professor da Universidade de Viena, sua obra foi traduzida em cerca de trinta línguas, e é composta por 24 livros propriamente ditos e 123 artigos. Segundo o historiador alemão Gerhard Fichtner, Freud teria escrito cerca de 20 mil cartas. Dez mil estão depositadas na Biblioteca do Congresso em Washington.
Responsável pela elaboração de teorias que estruturam o aparelho psíquico e fundamentam grande parte da psicologia moderna, a obra Freudiana caracteriza-se por possibilitar caminhos para compreensão de fenômenos radicalmente inacessíveis fora do âmbito de uma livre associação, os fenômenos inconscientes. Sonhos, fantasias, devaneios, lapsos, toda uma categoria de atos mentais desconhecidos para os pacientes, e marginalizados pela cultura ocidental dos anos 1900, foram pacientemente organizados por Freud. A especial atenção e o reconhecimento das atividades relacionadas à criança, suas pulsões agressivas e sexuais ( no sentido de prazer )marcam uma obra repleta de questionamentos bastante atuais. Maternidade e Paternidade em seus aspectos funcionais, representados pela tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, marcaram definitivamente a obra e
acabaram por determinar não somente, um campo bastante específico e fecundo de atuação da Psicanálise, mas também uma tempestade de protestos irracionais, baseados em sentimentos inconfessáveis, e críticas severas que segundo o próprio Freud, lhe custaram muito caro.
Freud faleceu em Londres, no dia 23 de setembro de 1939, às três horas da manha, após a solicitação de que lhe retirassem a vida devido ao intenso sofrimento. Por três vezes, Marx Schur aplicou-lhe três centigramas de morfina.


CONFLITO E CULTURA


Conflito e cultura, antes de conferir titularidade à mostra, é expressão de um pensamento meticulosamente elaborado durante todo o século XX. Característica da humanidade, o conflito em sua singularidade interna, moral, ética, e sexual é aquisição essencialmente humana, promovida pela cultura. Em “O mal estar da civilização’ ( 1930) Freud descreve com maestria sobre o antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pelo trabalho da civilização. “É impossível fugir à impressão de que as pessoas habitualmente utilizam falsos padrões de medida, buscam poder, sucesso e riqueza para si e os admiram nos outros, subestimando o que tem valor verdadeiro na vida”. Uma verdadeira “beleza americana.”
Conflito e Cultura, chega ao Brasil num momento onde qualquer analista não hesitaria em vislumbrar um certo determinismo psíquico nacional, momento de total reorganização das instituições – pelo menos no que diz respeito às aspirações populares- personificados por uma dita-dureza financeira já não tão velada, e uma inconseqüente e perversa distribuição de rendas. Um grande momento para se questionar a nação.



PSICANÁLISE E ATO


Independente de criticas ou de glorificações que poderão surgir em conseqüência da mostra a partir do dia 26, a importância maior será poder colocar em evidencia, as origens do pensamento Freudiano.
Uma arte interpretativa, uma ciência, uma utopia, qualquer que seja a visão que se tenha ou até mesmo o franco desinteresse , deverá produzir questionamentos. Talvez tenha sido esta, a mais importante contribuição de Freud para a contemporaneidade, pois o livre pensar, o livre associar, nos conduz inevitavelmente à gênese de qualquer construção. Progressivamente vislumbramos o futuro, regressivamente remontamos o passado.
Nada mais justo que remontarmos às origens, um procedimento que por excelência, remonta , reorganiza e revela origens alheias. A psicanálise da própria psicanálise, este é o verdadeiro legado de Freud.